domingo, 6 de janeiro de 2013

PRIVILÉGIOS DA TERCEIRA IDADE - http://valtatui-curiosidades.blogspot.com

PRIVILÉGIOS DA TERCEIRA IDADE

começa por esse negócio de "terceira idade". Todo mundo sabe que não primeira, nem segunda, nem terceira ou quarta idade — existe a idade que o sujeito tem mesmo, que nunca, aliás, vale nada. Idade vale para o futuro ou o passado. Jamais para o presente, porque mente quase todo mundo que afirma estar satisfeito com a idade que tem. Não está. Quando é menino (não vou fazer aqui feito americano e me referir explicitamente aos dois sexos; todo mundo sabe que estou querendo referir-me aos dois e não tenho culpa de a gramática inglesa complicar a fala politicamente correta deles e, por sinal, esse negócio de politicamente correto também enche o saco das pessoas normais), quer ser mais velho, para poder fazer o que os mais velhos fazem, notadamente extraordinárias burrices, tais como fumar e beber. Quando é rapaz e se tornou um farrapo humano capaz de filar um cigarro de alguém que acabou de conhecer ou mesmo não conhece, quer ser mais velho para poder pegar as mulheres que, nessa fase, o consideram um pirralho (a palavra hoje deve ser outra, mas deixei de atualizar o vocabulário há uns vinte anos, deve haver esse privilégio na lei também). Quando passa essa idade, não tem grana para sair com as mulheres e é obrigado a gastar tempo defendendo algum, além da odiosa e sempre somítica mesada. Quando a grana melhora, se melhora, o trabalho piora e tem pelo menos uma mulher que gruda e toma conta. E por vai, todo mundo se queixando até o dia de encerrar o expediente neste vale de lágrimas.
A terceira idade vem, como se sabe, acompanhada pela agravante de a gente virar tio. Não tem coisa mais insuportável do que virar tio de qualquer fedelho que apareça. Ou fedelha: neste caso, cabe a referência explícita ao sexo, principalmente quando a fedelha tem 25 anos, é a cara da Nicole Kidman e namora um xibunguinho qualquer que ainda nem bigode pode ter. Não sei se cabe aqui, neste jornal de família, sugerir a eloqüente resposta habitual dada pelo meu amigo Luciano Quibe Frito, rico milionário árabe, que é um pouco mais velho do que eu, mas não se queixa muito da idade, não porque o dinheiro disfarça bastante os cabelos brancos, como porque deve tomar Viagra na veia. A resposta é um pouquinho ríspida, mas, que diabo, pelo menos hoje resolvemos que não seremos politicamente corretos. Ele responde dizendo “meu jovem, eu não posso ser seu tio porque não tenho irmã na zona”, é isso que ele diz e eu também devia ser macho o suficiente para dizer e um dia ainda digo. 
E tem um rosário interminável de humilhações juridicamente consagradas, todas um complô para que subamos ao Pão de Açúcar e nos joguemos do bondinho, o que não faço porque, no necrológio, ainda ia sair que eu sofria das faculdades mentais. Outro dia mesmo, estou eu trêmulo no banco, eis que, em bancos, fico invariavelmente trêmulo, assim como em cartórios e repartições sortidas, esperando ser preso (espero sempre ser preso, é por isso que quero me inscrever finalmente na Ordem dos Advogados, para ter aquela carteirinha que direito a não ser preso numa cela de oito metros quadrados com mais 120 companheiros), quando um caixa me acenou:

Gestantes e deficientes! — berrou ele
Inspecionei minha barriga. Está certo que não se trata propriamente de uma tábua de passar, mas não chega a parecer de oito meses, como indicava a cara dele, além de que mantenho a expectativa de o bigode e a careca sustentarem minha aparência masculina pois a esta altura, com mais de 60 anos de prática, fica um pouco tarde para mudar
Gestantes e deficientes! — repetiu ele, depois que olhei em torno e achei que não era comigo
Mas eu... — tentei timidamente objetar
— É a mesma coisa, tudo a mesma fila, terceira idade também
É por essas e outras que não tenho arma e muito menos ando armado, porque, numa hora assim, a pessoa pode experimentar a chamada privação de sentidos (isso se dizia no meu tempo; acho que hoje se diz “surto”, não é? ou era dez anos? bem, é uma parada — gostaram? — dessas qualquer) e cometer um tresloucado gesto, no caso descarregar minha centenária garrucha no ofensor. Se ele complementasse me chamando de tio, acho que eu encerrava a conta no banco e talvez até levasse uma gruja de 15 centavos, a título de “abono de terceira idade”, eles são capazes de perpetrar isso. Mas não fiz nada, arrastei meus pobres pés de velho até a fila indicada e fiquei um bom tempinho, até porque, e este é outro requinte, ela era mais longa que as outras. 
Na Bienal do Livro, onde entrei como autor, uma vezinha , pude observar que estavam isentos de pagamento os menores de um metro e maiores de 60 anos. Quer dizer, eu, meus amigos e o Bloco dos Anões da Praça Onze, ou qualquer outra agremiação que congregue os — é assim que se diz “anão hoje em dia, isto eu aprendi — verticalmente prejudicados. Numa semana, fui chamado de deficiente, anão, transexual tarado e futura mamãe. Tinha até pensado em experimentar um teste pessoal da passagem de ônibus grátis, pelo gostinho, mas, como agora sei que seria pelo desgostinho, não vou experimentar nada. Aliás, aguardo ansioso a próxima medida, que provavelmente será proibir os terceiro-idadistas de sair de casa, para não expô-los à jângal da cidade grande. Concordo, concordo, contanto que eles ponham uns boys aqui, para cuidar dessas coisinhas de banco e correio para nós, coroas do prédio. E contanto que eles não chamem a gente de tio, é claro. Tio é a mãe e eu não tenho irmã na zona etc. etc. 

João Ubaldo Ribeiro
escritor
Fonte: Jornal O Globo

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